Artigo por: Paulo Armínio Tavares Buechele
O Código de Defesa do Consumidor é considerado o divisor de águas, no Brasil, da multiplicação de ações indenizatórias decorrentes de má prestação de serviços médicos e/ou hospitalares.
É legítimo que, em um Estado Democrático de Direito, a vítima recorra ao Judiciário para a reparação dos danos sofridos, mas é igualmente razoável a ela impor-se o ônus de definir o verdadeiro responsável pelo ato lesivo, evitando-se, assim, a “eleição” do réu da demanda por critérios inaceitáveis, como a maior capacidade financeira do médico ou do hospital para arcar com a indenização.
As relações Paciente/Médico e Paciente/Hospital submetem-se ao artigo 14 do CDC, que, em sua cabeça e parágrafos 1º a 3º, regula a responsabilidade dos fornecedores de serviços em geral (inclusive Hospitais), reservando o parágrafo 4º para a responsabilidade dos profissionais liberais (incluindo Médicos).
O traço comum entre ambas está no fato de que, para responsabilizar o Hospital por falha de sua estrita competência, a lei dispensa a prova da culpa, bastando demonstrar a ocorrência do dano e sua relação com a conduta do empregado, sócio ou preposto do nosocômio (“responsabilidade civil objetiva”).
Já o êxito de uma ação indenizatória por erro exclusivo do Médico fica sempre condicionado à prova da culpa do profissional, por negligência, imprudência ou imperícia.
Problema maior surge quando o paciente, vítima de erro estritamente médico, decide imputar apenas ou também ao Hospital o dever de indenizar-lhe o dano, sob o argumento de que o Médico integra o corpo clínico da instituição, mesmo que sem com esta manter qualquer vínculo (empregatício, societário ou de preposição).
Infelizmente, não são poucos os precedentes dos Tribunais brasileiros a condenar o Hospital, exclusivamente ou em solidariedade com o Médico, à indenização da vítima de um erro cometido apenas pelo Profissional da Medicina.
A Corte de Justiça Catarinense, tempos atrás, consagrou uma atípica hipótese de responsabilidade objetiva do Hospital por erro exclusivo do Médico, ao dispensar a investigação da causa do dano sofrido por Paciente (queimadura durante ato cirúrgico), escorada em um alegado dever do nosocômio de preservar-lhe a incolumidade física em qualquer situação. Confira-se:
“(...). Inobstante não restar evidenciado a qual das causas se ligou o dano, se à conduta do médico ou ao defeito no aparelho de eletrocautério, em ambos os casos persiste a responsabilidade do nosocômio pela incolumidade do paciente e, por conseguinte, a obrigação de indenizar os prejuízos sofridos pela autora. (...)” (4ª Câmara de Direito Civil, AC n. 2007.035976-0, DJe 10.09.2010).
A matéria, contudo, prossegue bastante controvertida no Superior Tribunal de Justiça, com decisões atualmente conflitantes entre as Turmas que compõem a sua Segunda Seção (Direito Privado), não obstante Precedente deste Órgão Maior no sentido da necessária distinção das responsabilidades entre Hospital e Médico, à luz das circunstâncias fáticas soberanamente assentadas pelas Instâncias Ordinárias (Cortes de 2º Grau).
Assim é que a 3ª Turma do STJ tem reconhecido a responsabilidade ao menos solidária do Hospital em situações de erro imputável apenas ao Médico integrante do seu Corpo Clínico, vislumbrando, nesses casos, sempre a presença de um “vínculo de subordinação administrativa” entre o Nosocômio e o Profissional da Medicina (RESP n. 1.257.969/SC, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 13.02.2013).
Já a 4ª Turma do mesmo Tribunal Superior procura distinguir, didaticamente, as responsabilidades de cada parte, ao sumariar as três hipóteses possíveis, a saber:
“DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL POR ERRO MÉDICO E POR DEFEITO NO SERVIÇO. SÚMULA 7 DO STJ. (...). 1. A responsabilidade das sociedades empresárias hospitalares por dano causado ao paciente-consumidor pode ser assim sintetizada: (i) as obrigações assumidas diretamente pelo complexo hospitalar limitam-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados à prestação dos serviços médicos e à supervisão do paciente, hipótese em que a responsabilidade objetiva da instituição (por ato próprio) exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado (art. 14, caput, do CDC); (ii) os atos técnicos praticados pelos médicos sem vínculo de emprego ou subordinação com o hospital são imputados ao profissional pessoalmente, eximindo-se a entidade hospitalar de qualquer responsabilidade (art. 14, § 4, do CDC), se não concorreu para a ocorrência do dano; (iii) quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional. Nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (arts. 932 e 933 do CC), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC). (...)”. (REsp n. 1.145.728/MG, Rel. p/ac. Min. Luís Felipe Salomão, DJe 08/09/2011 – grifamos).
Sublinhe-se que tal postura da 4ª Turma, ratificando entendimento emitido no RESP n. 1.019.404/RN (DJe 01.04.2011), revela-se consentânea com o último Paradigma exarado pela Segunda Seção do STJ no exame do mérito da questão (RESP n. 908.359/SC, Rel. p/ac. Min. João Otávio de Noronha, DJe 17.12.2008), em cuja Ementa lê-se:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. NEGLIGÊNCIA. INDENIZAÇÃO. 1. A doutrina tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal entendimento. Contudo, a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital – seja de emprego ou de mera preposição -, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar. 2. Na hipótese de prestação de serviços médicos, o ajuste contratual – vínculo estabelecido entre médico e paciente – refere-se ao emprego da melhor técnica e diligência entre as possibilidades de que dispõe o profissional, no seu meio de atuação, para auxiliar o paciente. Portanto, não pode o médico assumir compromisso com um resultado específico, fato que leva ao entendimento de que, se ocorrer dano ao paciente, deve-se averiguar se houve culpa do profissional – teoria da responsabilidade subjetiva. No entanto, se, na ocorrência de dano impõe-se ao hospital que responda objetivamente pelos erros cometidos pelo médico, estar-se-á aceitando que o contrato firmado seja de resultado, pois se o médico não garante o resultado, o hospital garantirá. Isso leva ao seguinte absurdo: na hipótese de intervenção cirúrgica, ou o paciente sai curado ou será indenizado – daí um contrato de resultado firmado às avessas da legislação. 3. O cadastro que os hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas instalações para a realização de cirurgia não é suficiente para caracterizar relação de subordinação entre médico e hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de organização empresarial. 4. Recurso especial do Hospital e Maternidade São Lourenço Ltda. provido”. (RESP 908.359/SC, Rel. p/ac. Min. João Otávio de Noronha, DJe 17.12.2008 – grifamos).
Portanto, o que se extrai da orientação prevalecente (até o momento) no Superior Tribunal de Justiça é que, nas hipóteses de comprovada inexistência de vínculo entre o Hospital e o Profissional membro de seu Corpo Clínico, não se poderá impingir à Entidade Nosocomial um abstruso papel de “seguradora” contra erro atribuível apenas à conduta culposa do Médico, devendo a este – e somente a este - ser imputada a responsabilidade indenizatória pelos danos sofridos pelo Paciente (CDC, artigo 14, §4º).
Assim corretamente se posicionando, a Jurisprudência majoritária do STJ não apenas contribui para o aperfeiçoamento da relação profissional entre Médicos e Hospitais, como cumpre um relevante papel na orientação das vítimas de erro médico, ao sinalizar que:
a) as ações indenizatórias por danos materiais e/ou morais contra o Hospital devem limitar-se às hipóteses de comprovada falha estritamente nosocomial (infecção hospitalar, intoxicação alimentar, erros cometidos pela enfermagem, defeitos em equipamentos hospitalares ou em materiais e medicamentos utilizados no atendimento do Paciente etc.) - todas causas para a responsabilização objetiva (independentemente de culpa) da Instituição de Saúde;
b) em contrapartida, o polo passivo daquelas demandas judiciais deve ser destinado exclusivamente ao Profissional da Medicina (Cirurgião, Anestesista ou Clínico) quando, inexistente o vínculo (empregatício, societário ou de preposição) deste com o Hospital, for imputável apenas à conduta culposa do Médico o erro do qual tenha resultado dano à incolumidade física ou psíquica ao Paciente (técnica cirúrgica equivocada, falha no dever de informar o paciente, alta médica antecipada, erro na prescrição medicamentosa, abandono do tratamento, dentre outros).
* Advogado Sócio da DMB ADVOGADOS ASSOCIADOS, em Florianópolis/SC